Educação | Espiritualidade

Reflexões sobre o uso apropriado dos estudos escolares, tendo em vista o Amor de Deus

Descubra como os estudos, mais do que notas, são um caminho para a santidade. Entenda a oração como um ato de atenção e aprenda a usar cada tarefa escolar para desenvolver a humildade e a concentração, transformando o aprendizado em um ato de fé.

Parte I

A chave para uma concepção cristã dos estudos é compreender que a oração consiste de atenção. Rezar é orientar em direção a Deus toda a atenção de que a alma é capaz. A qualidade da atenção é parte significativa da qualidade da oração. As fortes emoções não são páreo para ela.

A parte mais elevada da atenção entra em contato com Deus somente quando a oração é intensa e pura o bastante para que este contato se estabeleça; porém, todos os nossos atos de atenção estão voltados para Deus. 

É evidente que as tarefas escolares desenvolvem apenas um tipo inferior de atenção. Não obstante, são extremamente eficientes em aumentar o poder de concentração que estará disponível nos momentos de oração, com a condição de serem feitos sempre com tão-somente esse objetivo em mente.

Embora muitos ignorem este fato hoje em dia, o desenvolvimento da faculdade da atenção constitui o verdadeiro e praticamente único objetivo dos estudos. A maioria das tarefas escolares também traz em si algum objetivo intrínseco próprio, mas são sempre secundários. Todas as tarefas que realmente exigem o poder da atenção são interessantes pelas mesmas razões e praticamente em níveis semelhantes.

Crianças e jovens estudantes que amam a Deus nunca deveriam dizer: “eu só gosto de matemática”; “eu gosto de francês”; “eu gosto de grego”. Deveriam aprender a gostar de todos os assuntos, pois todos desenvolvem a faculdade daquela atenção que, ao ser direcionada a Deus, é a substância mesma da oração.

Não termos aptidão ou inclinação natural à geometria não significa que nossa faculdade de atenção não se desenvolverá se nos defrontarmos com um problema geométrico ou estudarmos um teorema. Ao contrário: isso é quase uma vantagem.

O mais importante tampouco é conseguir encontrar a solução do problema ou provar o teorema, embora seja importante realmente esforçar-se para fazê-lo. Seja qual for o caso, um esforço genuíno de atenção jamais será desperdiçado, trazendo sempre seu efeito no plano espiritual e, por conseqüência, no plano inferior, a inteligência, pois todas as luzes espirituais iluminam a mente.

Se concentramos nossa atenção em tentar resolver um problema de geometria e, passada uma hora, não estivermos mais perto de sua solução do que quando começamos, mesmo assim teremos progredido a cada minuto desse tempo numa outra dimensão, mais misteriosa. Sem que saibamos ou sintamos coisa alguma, este esforço aparentemente inútil trouxe mais luzes para nossa alma, e um dia descobriremos o seu resultado na oração. Além disso, provavelmente o perceberemos em alguma região de nossa inteligência muito distante da matemática. Algum dia, talvez, por conta disso, aquele que fez inúteis esforços nessa área possa perceber mais vividamente a beleza em um verso de Racine. Todavia, é certo que tal esforço dará seu fruto durante a oração. Quanto a isso não há a menor dúvida.

Esse tipo de certeza vem com a experiência. Porém, se não acreditamos nela antes de a vivermos, ou se não nos comportamos ao menos como se acreditássemos nela, nunca teremos a experiência que leva à certeza. Há uma certa contradição, aqui. Em um certo nível, este é o caso de todos os conhecimentos úteis sobre o progresso espiritual. Se não regularmos nossa conduta por eles antes de termos provas de sua eficácia, se não nos fundarmos nele por um longo tempo apenas pela fé — uma fé tempestuosa e opaca, no início — nunca a transformaremos em uma certeza. A fé é a condição indispensável.

O melhor suporte para a fé é a garantia de que, se pedirmos a nosso Pai um pão, Ele não nos dará uma pedra. Sem tocarmos ainda na crença religiosa explícita, sempre que um ser humano consegue fazer um esforço de atenção, tendo em vista apenas o crescimento de sua percepção da verdade, sua capacidade de percebê-la aumenta um pouco, mesmo que seus esforços não produzam nenhum fruto visível. Uma lenda esquimó explica o surgimento da luz da seguinte maneira: “Durante a eterna escuridão, o corvo, incapaz de encontrar comida, desejou a luz, e a terra foi iluminada”. Se houver um desejo verdadeiro, se a coisa desejada for realmente a luz, o desejo por ela acaba por produzi-la. Há um desejo verdadeiro quando há um esforço de atenção. A luz é realmente desejada, se faltarem todos os outros atrativos. Mesmo que nossos esforços de atenção pareçam não dar resultados por anos a fio, um dia uma luz, brilhando na proporção exata à nossa capacidade de atenção, irá inundar nossa alma. Cada um destes esforços acrescenta um pouco de ouro a um tesouro que nenhum poder terreno pode roubar. Os esforços inúteis feitos pelo Cura d’Ars por longos e dolorosos anos na tentativa de aprender latim frutificaram em seu discernimento espetacular, que lhe permitia ver a alma mesma de seus penitentes, além de suas palavras, ou mesmo de seu silêncio.

Portanto, os estudantes devem trabalhar sem nenhum desejo de “tirar nota”, passar nas provas ou ganhar títulos escolares, sem apegar-se a suas habilidades e gostos naturais, aplicando-se igualmente a todas as tarefas, com a idéia de que cada uma delas o ajudará a formar o hábito daquela atenção que é a substância mesma da oração. Ao começarmos um determinado trabalho, é necessário desejar fazê-lo corretamente, porque essa vontade é indispensável em qualquer esforço sincero. Porém, sob esse objetivo imediato há um propósito mais profundo, isto é, deveríamos focar apenas em aumentar o poder de nossa atenção tendo em vista a oração, assim como, ao escrever, desenhamos as formas das letras sobre o papel, não apenas para desenhar, mas a fim de expressar uma idéia. Tornar essa idéia o único e absoluto objetivo de nossos estudos é a primeira condição a ser observada se quisermos conduzi-los na direção correta.

A segunda condição é passar pela dor de examinar detalhadamente e observar, com paciência e atenção, cada tarefa escolar em que falhamos, percebendo como são desagradáveis e secundárias, sem procurar desculpas ou desprezar qualquer erro ou qualquer correção dos professores, tentando chegar à raiz de cada erro. Há uma grande tentação de fazer o oposto, dar uma olhada superficial nas correções dos exercícios — especialmente se forem muitas — e colocá-las de lado. A maioria de nós faz isso sempre. Temos de resistir à tentação. Não é por acaso que nada seja mais necessário ao sucesso acadêmico do que isso, já que, apesar de todos os nossos esforços, acabamos progredindo muito pouco se nos recusamos a dar atenção aos erros que cometemos e às correções de nosso tutor.

Além do mais, é dessa forma que podemos adquirir a virtude da humildade, tesouro muitíssimo mais precioso do que qualquer progresso acadêmico. Deste ponto de vista em particular, talvez seja-nos mais útil contemplar nossa burrice do que nossos pecados. A consciência do pecado nos dá a sensação de que somos maus, o que abre portas para um certo tipo de orgulho ferido. Quando nos forçamos a prestar atenção — não somente com nossos olhos, mas com a própria alma — em um exercício escolar no qual fomos reprovados por simples estupidez, vemos nascer em nós, com evidência irresistível, uma percepção clara de nossa mediocridade. Não há conhecimento no mundo que seja mais desejável do que este. Se chegarmos a conhecer essa verdade com toda a nossa alma, estaremos firmes sobre alicerces adequados.

Se essas duas exigências forem cumpridas com a maior perfeição possível, não há dúvida de que os estudos escolares serão um caminho para a santidade tão bom quanto qualquer outro. Para conseguirmos realizar a segunda exigência, basta que se tenha boa vontade. Não é o caso da primeira. Para que possamos realmente prestar atenção, é preciso saber dispô-la da maneira correta.
[continua…]

Simone Weil

Escritora e Filósofa

Compartilhe:

Mais Artigos

O que é saber? A pedagogia da refutação

Wellington Faria

O texto diferencia saber de memorizar em matemática. Usando Sócrates, mostra que o aprendizado real só começa com a consciência da própria

Conheça nossos cursos

Palestra ministrada por Padre Paulo Ricardo dentro de formação privada para pais de alunos do colégio Mater Puríssima.
Esta é a gravação de um dia inteiro de reunião de pais do Colégio Mater Purissima, que ocorreu no dia 03 de fevereiro, para visualização tardia de quem participou ou não pôde participar.